domingo, 11 de novembro de 2012

A Boca do Lixo em Nápoles: Secondigliano e Scampia




   

     Ok...quando passamos pelas ruazinhas estreitas e mal encaradas do Quartieri Spagnoli até sentimos um medinho, e a prudência universal nos avisa que em lugares assim, onde não conhecemos nada, é preciso ter cuidado redobrado com a carteira e os pertences, não usar relógios e jóias, coisas assim....Tirando essas coisas, visitar o Quartieri Spagnoli é uma experiência bem legal, você sente a vivacidade e a alegria do povo napolitano. Está certo que algumas vezes, você lê nos jornais que prenderam aqui e ali, dentro do Quartieri Spagnoli, um dos chefões da Camorra. Mas isso são coisas que você não vivencia, se você não mora ali. Não é ali no centro de Nápoles, à luz do dia, que você vai ver as coisas mais assustadoras...

    Mas se Nápoles tem uma face mais violenta, (e ela tem, com certeza), são nos  bairros situados mais ao norte que isso vem à tona. Hoje eu vou falar de dois lugares que eu queria ter conhecido, mas não pude ir. Não por falta de tempo, nem por falta de vontade. Mas eu estava sozinho na cidade, sem conhecer ninguém, sem ninguém que conhece os meandros da malandragem napolitana, eu não iria lá sozinho, parar bem lá, na Boca do Lixo de Nápoles: nos bairros de Secondigliano e Scampia....


File:Quarters of Naples.png


     Nessas regiões, um rosto desconhecido torna-se rapidamente um alvo fácil. Os bairros do Norte são constantemente vigiados por sentinelas. O objetivo é detectar policiais, carabineiros, membros de clãs rivais. Se nem o Google Street entra nessas regiões, e nem mesmo a companhia de recolhimento do lixo ASA, quem dirá um simples turista com a mochila nas costas, é pedir pra morrer né? Não sou bundão, mas também não mexo no vespeiro!!!


    O SISTEMA: A MÁFIA NAPOLITANA

   Falar sobre os bairros do norte, e dizer que eles vivenciam diariamente, os maiores problemas de uma cidade que em si já é muito problemática, é falar desse que é um dos grandes problemas do cotidiano napolitano: a Camorra. Eu sei que tudo que eu for falar aqui é muito superficial, você estando de passagem por um lugar, você não vivencia tudo aquilo, você só ouve estorietas contadas aqui e ali. A Camorra já está tão infiltrada no dia a dia dos napolitanos que é conhecido apenas como "O sistema". Para conhecer a realidade da máfia napolitana, esqueça os esteriótipos hollywoodianos sobre o típico "mafioso italiano" à lá Don Corleone...

    A Camorra existe desde o século XIX e já começou a ser formada na época em que Nápoles fazia parte do Reino das Duas Sicílias. Ao contrário da máfia siciliana no sul da Itália, a Camorra é uma organização estritamente urbana. Alguém já disse que a mafia napolitana é uma espécie de polvo, que lança seus tentáculos sobre os bairros de Nápoles...e ela é assim, forma uma espécie de rede, e atua de forma tentacular, capilar (como uma espécie de rizoma ou raiz), não há um comando central, como por exemplo a Máfia Siciliana, que tem uma Comizzione, um centro de comando...Desde a sua origem, a Camorra se divide em mais de uma centena de famílias que se ramificam e se dividem. A Camorra age através da formação de pequenos clãs, que dominam uma determinada área...os clã não tem necessidade de se agruparem em macrocorpos, cada um se organiza de forma autônoma. Isso é formado à maneira de uma empresa, que pode atuar em suas filiais, sem que haja um comando central diretamente ligado: hoje um grupo pode decidir rapinar, destruir montras, assaltar, sem que sua ação seja subordinada à um comando superior. 

   É por isso que dizem que a Camorra é uma máfia sem rosto...Assim, ao contrário das organizações como a Cosa Nostra, a Máfia Napolitana domina praticamente desconhecida, como uma espécie de sombra - é muito difícil saber que é da máfia, ela pode estar ali, ao seu lado, você não sabe...Entre membros efetivo, colaboradores, informantes, subordinados, pessoas que recebem propina, quase todo mundo tem um dedinho ali com a máfia...Caras que eram os chefões de algum clã da Camorra espalhados por Nápoles viveram anos a fio sem levantar nenhuma suspeita...


   Nápoles não é formada apenas por indivíduos batedores de carteira que assaltam e rapinam para encher os bolsos de dinheiro e comprar um relógio de ouro ou um carrão. Eles formam uma verdadeira economia. Os grandes negócios da Camorra estão espraiados pela sociedade, eles estão envolvidos por exemplo, no sistema de recolhimento de lixo, que gerou o grande caos em 2009. A Camorra é um verdadeiro business. O governo muncipal julgava combater a máfia local, ao não negociar com contrabandistas e traficantes, mas isso não foi o suficiente. O governo subvalorizou o poder de influência das famílias envolvidas com os clãs de mafiosos, julgando ser uma coisa da periferia, mas a infiltração camorrista na Campagna atingiu um nível tentacular, agora ela se confunde com o próprio sistema, ela montou uma parafernalha na qual existe e subsiste às custas do próprio funcionamento orgânico da cidade, está em simbiose com o seu meio. Nápoles respira a Camorra, em Nápoles, os negócios da Camorra formam uma economia à parte...
  Por isso é tão difícil destituir do discurso sobre a violência napolitana, o dedinho da Camorra em tudo que existe de mais pútrido naquela sociedade...A Camorra é a navalha que lacera a carne, a epiderme da cidade..

   
 SECONDIGLIANO: "O BAIRRO MAIS PERIGOSO DO MUNDO"

   Quando você percorre o norte de Nápoles você percebe uma enorme diferença. Ao contrário do centro histórico de Nápoles, dominado pelas suas vielas estreitas e mal ventiladas, as áreas do norte se espraiam em grandes campos abertos, estradas bem ventiladas, com prédios pequenos e campos de alcatrão, é como se estivéssemos entrando numa região rural...Mas Secondigliano possui algumas das credenciais menos desejáveis da cidade. Ela ostenta o título de "O bairro mais perigoso do mundo" (ou seja, da Europa). E frequentemente é chamado, pelos próprios napolitanos como a "Faixa de Gaza" da Itália...deu pra perceber o clima? 

quadrivio secondigliano




  A ausência total do Estado e de projetos sociais que deem alguma dignidade a população situada mais ao norte de Nápoles fez com que essa região se tornasse uma verdadeira Boca do Lixo, literalmente. Sem nenhuma perspectiva de crescimento social ou superação, a região do Secondigliano virou uma espécie de laboratório do narcotráfico, quintais são transformados em pequenas fábricas de fundo de quintal, terrenos baldios e prédios degradados são utilizados como Quarteis Generais do Narcotráfico, avenidas de acessso são tomadas pelos passadores. É um cenário tão desolador quanto o de uma guerra...Só que em Secondigliano, a guerra é perpétua, ela é travada todos os dias, sem que ninguém veja...no mundo lá fora.
   Numa região sem potencial econômico de crescimento, o narcotráfico representa uma economia viva. Secondigliano é um dos lugares mais populosos da Itália e também um dos mais pobres.
   O bairro é constantemente vigiado pelo narcotráfico. As entradas e saídas são observadas pelos sentinelas que procuram detectar policiais, carabinieris, membros de clãs rivais. Mas há também um intenso entra e sai de compradores e usuários de drogas. Estes fazem uma espécie de peso morto na vida cotidiana do Secondigliano. Se não representa ameaça, é como se não existisse.
    O mecanismo do narcotráfico é a única instituição realmente organizada num cenário devastado pela ausência do Estado. Lá, o business do tráfico funciona direitinho, sentinelas trabalham em turnos, há horário de funcionamento do tráfico. Na Via Baku, especialmente nos finais de semana, há um intenso movimento em busca de drogas. Os usuários formam filas de carros, pegam a dose, e vão embora. Os traficantes são conhecidos como passadores. Dizem que na Via Baku movimenta-se mais de meio milhão de euros por mês!
   Quando chega a polícia, os passadores sabem exatamente para que casas devem dirigir-se e em que lugar esconder a droga. Diante do perigo iminente, há sempre os vigias que posicionam motos ou carros perto dos locais do tráfico, e rapidamente conseguem levar um passador para uma região distante. Os vigias não possuem carteira de motorista, por isso, no máximo que conseguem fazer é confiscar o seu veículo, mas não há como incriminá-los pela ligação com o narcotráfico.



   UM PARAÍSO MELANCÓLICO: AS VELAS DE SCAMPIA

  Scampia tem no seu nome o seu próprio espaço. Scampia, no dialeto napolitano, significa desaparecido, refere-se ao descampado que apareceu na região, que era coberto de ervas e plantações, para dar lugar ao bairro que foi aberto em meados dos anos 60. Lá está uma das construções mais aterradoras do norte de Nápoles: a Vele di Scampia (Velas de Scampia). 



   Como um imenso Moloch de concreto, as velas, um conjunto de 7 blocos de  edifícios em formato triangular que lembra uma vela, construído nos anos 60 e que aspirava ao crescimento econômico da região, hoje encontra-se totalmente abandonado e invadido pela população de sem-tetos. Forma uma espécie de organismo à parte, com vida própria, um pequeno falanstério às avessas, um prédio totalmente ocupado, decadente, sem nenhuma condição mínima de higiene e infra-estrutura, onde as pessoas comem, vivem, dormem em meio à lixo e infestações de ratos e baratas. 
   Um verdadeiro elefante branco situado na região norte de Nápoles...resultado de um puro delírio arquitetônico, as Vele di Scampia foi inspirada em Le Corbusier. Ela é um exemplo de uma utopia de cimento, e atesta a falência total e a ausência do Estado na região. O que fazer com esse imenso prédio? 
  As condições degradantes de vida dos moradores da Vele di Scampia fazem com que Nápoles esteja no topo dos que desrespeitam o Direito de Moradia. Uma comissão liderada pela brasileira Raquel Rolnik visitou Scampia recentemente, mas o lugar continua a ser uma megaconstrução que desafia todos os projetos políticos possíveis...No campo aberto no norte de Nápoles, região que deveria impulsionar o crescimento econômico, e que foi abandonado, fruto de um delírio político, acabou se transformando no que é hoje: um imenso bloco de pedra sem vida, um jardim desolado...uma paisagem sombria de seres humanos abandonados à própria sorte. 


    O PECADO DE TER NASCIDO...

   Não acredito que seja simplesmente igual você falar de qualquer lugar pobre, qualquer bairro violento de uma periferia urbana. Scampia e Secondigliano tem suas especificidades. 
   Há muito tempo eu li algo assim... Existe um lugar onde você tem culpa apenas por ter nascido. O primeiro choro e o último catarro tem o mesmo valor: o da culpa. Conte onde você nasceu e imediatamente estará marcado por esta chaga. Não importa os sonhos que você teve, o que você construiu na vida, a marca do lugar onde você nasceu está imprimido na seu rosto, quase como um número de identificação. Esse lugar é amplo e decampado, mas só o conhecem os moradores que vivem lá. Porque entre os réus todos se reconhecem. No final, os réus são absolvidos. Mas os cidadãos comuns não sabem oque se passa lá...

    Estamos falando, obviamente, dos bairros de Scampia e Secondigliano, a Boca do Lixo de Nápoles, o filho jogado na sarjeta após o nascimento, o nódulo indesejável...

   Quem vai lá? Quem se importa? Esses lugares vivem completamente alheio à tudo que eu e você conhecemos...


11 comentários:

Ja Farias disse...

Oi Maurício adorei esse texto, eu comecei a pesquisar sobre a máfia de napoles quando li gamorra, é incrível como não se comenta nada sobre essa região, deve ser pq deve ser uma vergonha para o próprio país sendo melhor se ninguém se importar.É realmente muito triste o que ocorre lá.

Maurício Ouyama disse...

Olá, obrigado por visitar o blog e pelos comentários. Fiquei muito tempo pensando se deveria escrever sobre Scampia e Secondigliano, já que eu não pude ir até lá. Mas como este é um blog de viagens, achei que deveria falar desses lugares também. Nápoles é uma cidade cativante e com uma efervescência única, mas ao mesmo tempo é inacreditável que mesmo na Europa exista um lugar como as Velas de Scampia

ninphea disse...

Amei o texto e a tua pesquisa sobre Napoli!

Unknown disse...

Ótimo texto!

Anônimo disse...

Ótimo texto mesmo.

Anônimo disse...

Oi, tem um série italiana chamada Gomorra sobre a Camorra (baseada na obra do Saviano) que se passa neste bairro. Não sei se passa no Brasil, mas vc encontra na web em italiano. A série é maravilhosa e irá para a segunda temporada.

Maurício Ouyama disse...

valeu pela dica, vou tentar baixar essa série..abrçs

Anônimo disse...

Se um dia poderes, vem visitar os bairros em Portugal gostava de saber a tua opinião sobre os nossos bairros de lata " GUETTOS". Na "Marguem Sul" e onde existe os piores bairros de Portugal e os maiores da europa, uma realidade infeliz mas NÓS lidamos com ela dia a dia. Tem perto de 65 bairros por onde escolher só na Marguem Sul mas dê um olho no bairro da Fonte da Prata e se puderes diz-me o que achas sobre o bairro. Trafico, prostituição, tiroteios, tens muito por onde falar abraço. R.F.P CITY

Diogo salles disse...

Em setembro de 2015 estive em Napoles e acontecimentos fortuitos me levaram a ficar hospedado em..... Secondigliano (hotel barbato, corso secondigliano) ate entao nao sabia o que ia encontrar, tampouco conhecia a fama do bairro. por conta do transito caotico, nao usei carro, inventei de ir a pe ate a estacao de trem mais proxima... Eu me deparei com um bairro inacreditavelmente degradado, sendo que nem nas periferias brasileiras havia visto algo parecido. Quantk mais andava, mais o medo tomava conta, mas esse mesmo medo me empurrava, para seguir em frente. Por onde passava, por meio de minha visao periferica via olhares me acompanhando... Durante a noite, barulho de fogos contrastavam com Barulho de tiros. Mas nao me arrependo de ter estado lá e nas circunstancias em que estive: sozinho, como turista e completamente ingenuo e alhei a realidade daquela regiao!

Maurício Ouyama disse...

que relato incrível, Diego. Gostaria muito de ter conhecido Secondigliano e Scampia, mas o meu tempo era curto. Porém, no peito e na ração, como foi com vc, é pra poucos.

Unknown disse...

Gostei do texto não sabia dessa particularidade da boca do lixo,importante sabermos dessas informações
quando nos propomos a viajar e como conhecimento social.

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