segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Lágrimas nas cinzas: os corpos petrificados em Pompéia


      

      O GESTO

    Num ensaio sobre a fotografia no seu livro Profanações, Giorgio Agamben faz uma análise interessante sobre as relações entre a fotografia e o gesto. Diz Agamben que para ele, a fotografia, de algum modo, representa o mundo da maneira como ele aparece no dia do Juízo Universal.
     Certamente, não é por uma questão de tema: as fotografias podem ser as mais banais e cotidianas, podem retratar uma cena patética, o andar sobre uma calçada, a primeira volta de uma criança numa bicicleta,  uma planta que cresce ao sol, uma pessoa atravessando a rua, etc.  A foto pode mostrar um rosto, um objeto ou um acontecimento qualquer. 
    Mas, diz Agamben, é “o que aparece que importa...é aquilo que foi capturado numa máquina fotográfica, num pequeno instante, ínfimo e banal, aquele gesto mais cotidiano, que é convocado para comparecer no dia do Juízo Final.
      Por exemplo. Era conhecida no século XIX a fabulosa máquina de Daguèrre, o daguerrótipo, capaz de capturar uma imagem ou uma cena que estaria disposta diante da geringonça. Daguèrre um dia posicionou sua máquina na janela do seu estúdio no Boulevard Du Temple em Paris e tirou uma chapa. Era um horário de pico, e a chapa tirada por Daguerre, deveria conter uma rua cheia de gente passando, cavalos, carroças, etc.
      Porém, essa que é considerada uma das primeiras fotografias em que aparece uma figura humana é bastante intrigante: você não vê nada, apenas uma sombra preta, uma mancha, no canto esquerdo da fotografia – era a de um cavalheiro francês que ficou bastante tempo imóvel, ao deixar-se engraxar os sapatos, para ser capturado por uma lente fotográfica ( pois nessa época precisava haver um longo período de exposição do objeto para que ele fosse capturado na chapa de prata).
       Numa multidão de seres humanos, aliás, a humanidade inteira, uma cidade inteira, está presente, mas não se vê com clareza, apenas uma única pessoa, uma única vida, exatamente aquela e não outra.
       Aquela vida, aquela pessoa, foi colhida, apreendida, imortalizada, por uma máquina, no seu gesto mais banal e cotidiano de fazer-se engraxar  os sapatos. No instante supremo, cada homem, cada ser humano, no dia em que apresentar-se no Juizo Final será tolhido no seu gesto mais banal, íntimo e cotidiano. Isto é o gesto.
      O gesto tem a capacidade de condensar o peso de toda uma vida, num único movimento ou acontecimento. Retenhamos o principal: o  gesto carrega em si, o peso de toda uma vida.  É aquela atitude, aquela posição corporal, aquele sorriso, aquele som, aquele tique, mesmo irrelevante e bobo, que compreende e resume em si o sentido de uma existência.

      APOKATASTASIS

     Digamos que há, acompanhando Agamben, uma relação secreta entre o gesto e a fotografia.  Se o gesto é aquilo que pode condensar num instante ínfimo o peso de toda uma vida, a fotografia é aquilo que fixa irrevogavelmente esse gesto no tempo, aquilo que imortaliza o gesto. O gesto encontra na fotografia sua hora típica, seu lócus.
      A fotografia tem o poder de condensar o gesto e convocar suas potencias internas e angelicais para ser apresentada diante do Juizo Universal, a hora última.
     No inferno pagão, no Hades, os mortos repetem ad infinitum o mesmo gesto: Issião faz girar a roda para todo sempre; as Danaides tentam inutilmente carregar a água em um tonel furado. O gesto parece ser aquele momento residual, o qual  repetimos sempre e sempre...
    A eterna repetição é aqui a chave secreta de uma apokatastasis  (ἀποκατάστασις), ou seja, da recapitulação infinita de uma existência.

   O GESTO, AS LÁGRIMAS E AS CINZAS...

   Ao visitar Pompéia e diante daqueles corpos petrificados, conservados exatamente naquele instante último, não pude deixar de pensar nisso. Aquelas pessoas, surpreendidas pelo Vesúvio, permaneceram imóveis, petrificadas, exatamente na posição em que elas estavam naquele ano de 79 d.C. 



     Elas estão e estarão paradas, estáticas, aprisionadas para todo sempre num único e derradeiro gesto. Esse caráter de uma apokatastasis, de uma repetição eterna e contínua de um único gesto, é o que mais me marcou naquele dia, numa tarde quente, visitando Pompéia.
  Deixei para falar sobre os corpos petrificados em Pompéia por último, porque é muito difícil falar sobre aquilo...de repente, nos damos conta de que aqueles bonecos de pedra que vemos lá, não são simples estátuas, manequins, são seres humanos, vítimas de uma grande tragédia...e quando cai a ficha, meu amigo...é foda!!! Quando você menos espera, as lágrimas caem às bicas do seu rosto...não tem como, aquilo mexe com você!
     Graças às lavas do vulcão que conservaram aquelas pessoas, o que vemos lá, quando visitamos Pompéia, são corpos imóveis, estáticos, aprisionados em sua irrevogabilidade infernal (no sentido pagão de uma eterna repetição do mesmo momento).
     Então o que eu digo é...quem visitar Pompéia, e quiser ver aqueles corpos petrificados, prepare-se para ter emoções fortes.
      Depois de deparar-se com a morte, e visualizá-la de uma forma quase pornográfica, escancarada, você nunca mais será o mesmo...alguma coisa ficou lá, uma parte de você morreu também, um pedaçinho de você ficou entre aquelas cinzas, mesmo que sejam apenas as lágrimas....






FORO DEI GRANAI










OS CORPOS NAS TERMAS STABIANAS









ORTO DEI FUGGIASCHI















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