sábado, 3 de novembro de 2012

Il ventre di Napoli: a evisceração de Nápoles





SVENTRARE NAPOLI!!!

"Bisogna Sventrare Napoli!!"
Agostino de Petris, 
Presidente do Conselho de Ministros da Itália, 1884
   

   Não sei porque, mas quando eu vejo aquele quadro de Francis Bacon, Figure with Meat, eu lembro imediatamente de uma frase de Agostino de Petris sobre Nápoles: "Bisogna Sventrare Napoli" - é preciso eviscerar Nàpoles!!!

    Certamente, o quadro de Bacon nada tem haver com o Presidente do Conselho de Ministros da recém unificada Itália. O quadro de Bacon é uma alusão à pintura de Rembrandt do Papa Inocêncio.

    Mas a sugestão em mim é muito forte. Quando eu vejo esse quadro,logo associo à figura de De Petris, altivo, como o papa retratado por Rembrandt. Atrás, a carcaça aberta, seria como uma Nàpoles, destrinchada, o ventre aberto, a carne exposta. Foi assim que Nàpoles se viu completamente aberta em suas entranhas, em meados do século XIX, as vísceras expostas, aberta obscenamente, como um simples animal abatido no matadouro...


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     O CORSO UMBERTO I

    O símbolo dessas mudanças é o Corso Umberto I...
  Logo que você chega à Nápoles e sai da estação Napoli Centrale e cai na Piazza Garibaldi, instintivamente você vai sendo guiado pelo fluxo para uma imensa avenida.  Essa rua atípica em Nápoles é o Corso Umberto I, chamado também de Rettifico. É uma grande avenida com ares cosmopolita que segue  em linha reta por mais de 1 km, que corta uma grande parte do centro de Nápoles e liga basicamente a região da Piazza Garibaldi e da Estação à Piazza del Plebiscito, a maior praça de Nápoles. 

   Essa avenida é toda incomum para Nápoles. A primeira impressão que você tem é que você está num boulevard parisiense. 


     





    Esta grande avenida, de mais de 1, 3 km, é claramente inspirada nos boulevards pariesienses. Ela era a queridinha do então prefeito de Nápoles, Nicolas Amore, e formava, junto com a Piazza della Borsa, o Teatro di San Carlo  e a Galleria Umberto I, um processo de reformas urbanísticas que teve o nome bonitinho de "Rinascimento", mas que na verdade, esconde por trás de um nome pomposo, um processo violento. Bairros inteiros como Chiaia, Pendino, Porto, Mercato e Vicaria foram implodidos de ponta a ponta, ruas inteiras sumiram do dia para noite. Quarterões inteiros de prédios densamente povoados foram colocados abaixo à golpes de cutelo.
    Quando perguntaram ao Presidente do Conselho de Ministros, Agostino De Petris, em 1884 se afinal aquela reforma não estava sendo excessiva, ele responde que "È preciso eviscerar Nápoles"....



Agostinho Depretis.jpg
De Pretis - "Napoles deve ser eviscerada"



     A GRANDE EPIDEMIA DE CÓLERA DE 1884

     Se a situação de Nápoles já não é das melhores hoje em dia, imagine há 100, 200 anos atrás, quando as condições de higiene e salubridade eram bem mais complicadas. Uma das grandes preocupações das cidades europeias que passaram por reformas urbanas no século XIX era a questão da salubrididade urbana. Várias cidades tinham seus centros degradados, formados por ruas cheias de cortiços, bordéis, sujeiras. Ambientes fechados e insalubres. 
    Haussmann em Paris foi o primeiro de uma esteira de diversas reformas urbanísticas que aconteceram na Europa no século XIX. 
    De certa forma, as reformas de Haussmann em Paris tornou-se uma espécie de modelo para reformas em outras grandes cidades como Viena, São Petersburgo e até Rio de Janeiro (do então prefeito Pereira Passos), que aconteceram na última metade do século XIX.




   Mas em Nápoles a situação era bem complicada. Há muito tempo a cidade estava no vermelho. Ela era uma cidade toda formada por ruas estreitas, mal iluminadas, e sem nenhum tipo de saneamento de esgotos. É o ambiente ideal para a proliferação de moléstias e epidemias. 
   A cidade havia passado por diversos surtos ao longo dos anos. Mas em 1884 houve uma epidemia de cólera tão violenta que houve até a intervenção do Presidente dos Ministros da Itália nessa cidade. 

     Uma procissão religiosa que aconteceu em 1884 mostra o tamanho do desespero. Milhares de pessoas saíram rezando pelas ruas, chorando seus mortos...a cidade estava em colapso.


    Não havia como: para solucionar o problema das epidemias, era preciso uma reforma radical no centro de Nápoles. Era preciso estripar Nápoles, deixar suas entranhas de fora, para que os problemas fossem sanados. Era literalmente o que as autoridades pensavam. Era essa a idéia de Nicolas Amore...abrir todo o centro de Nápoles.



    Em função dessa epidemia de cólera de 1884 e a intervenção de De Petris na cidade, foi elaborada em 1885, uma lei de reorganização urbana, chamada de Legge per Rinascimento.   É a primeira vez que a palavra Rinascimento é aplicado nesse contexto específico. Essa Legge per Rinascimento abriu portas para que dezenas de edifícios fossem postos abaixos, uma grande área entre a Piazza Garibaldi e a Piazza della Borsa foi removido para a construção do Corso Umberto I. Para você ter uma idéia, até o Castelo dell´Ovo, um dos monumentos históricos da cidade, correu o risco de ser botado para baixo. 
     Em 1888 foi fundada a Società per Rinascimento, destinada à propor melhorias e promover a limpeza de Nápoles.
    No final desse processo, Nápoles teve o seu porto modernizado, ganhou uma grande avenida ligando a estação ao centro;teve as áreas do Vomero e Posilipo transformadas em agradáveis bairros residenciais,  foi dotada de espaços típicos para o divertimento da classe mais alta, como a Galeria Umberto I e o Teatro di San Carlo. 

   Nesse processo, as vozes dos pobres nunca foram ouvidas. Apenas a vontade dos poderosos como De Petris e Nicolas Amore prevaleceram, insensíveis. Em nome do progresso, milhares de pessoas perderam suas casas. Mais de 7 mil pessoas morreram e outras tantas foram desalojadas.  É uma coisa que não aparece nos números, nos relatórios. Embaixo de uma máquina burocrática, com seus números e estatísticas, a violência desse processo é mascarada com o pomposo nome de Rinascimento...




IL VENTRE DI NAPOLI

  É neste sentido que a resposta dada pela escritora Matilde Serao permanece extremamente atual. O seu livro chama-se exatamente "Il Ventre di Napoli" (título inspirado no livro de Emile Zola, Le Ventre de Paris)




   Ela começa esse livro como uma espécie de trabalho investigativo sobre as razões da cólera de 1884, mas toda a primeira parte do livro é uma imensa carta escrita à De Petris. Basicamente ela fala o seguinte: o senhor estava errado, De Petris, você não entendeu nada. Porque o governo é você, e o governo deveria saber de tudo, deveria saber do outro lado (das pessoas menos favorecidas). O senhor não conhece o ventre de Nàpoles, senhor De Petris. 
      Toda a primeira parte do livro (o texto é fragmentado, publicado em partes no jornal romano Capitain Fracassa) é um convite para De Petris descer aos subterrâneos de Nápoles, conhecer suas entranhas, fazer um verdadeiro tour. Só assim, diz Serao, é possível conhecê-la verdadeiramente.


    Sabe, às vezes eu pensava  nos acontecimentos durante o "Rinascimento" da última metade do século XIX em Nápoles e o seu espirito do "Sventrare Napoli", enquanto andava pelo belíssimo Corso Umberto I.   
    Quando eu finalmente conheci Nápoles de verdade, eu não pude deixar de pensar que as suas entranhas continuam abertas...

    De vez em quando, suas tripas aparecem expostas, suas imundices vêm à tona, como as montanhas de lixo que se espalharam pela cidade na recente (mas crônica) Crise do Lixo em 2009, penso que as tripas de Nápoles continuam expostas, sua carcaça obscenamente aberta...como no retrato de Francis Bacon.





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