sexta-feira, 21 de setembro de 2012

A Sala de Estar de Milão: a Galleria Vittorio Emanuele II

            

              ENTRANDO NA SALA DE ESTAR


             A Galleria Vittório Emanuelle é também conhecida como "Il Salotto di Milano" - ou seja, a "Sala de Estar de Milão". E o título é bem conveniente, porque é através da Galleria Vittorio Emanuelle que você tem a impressão de começar a conhecer Milão. É por ela que você é recebido na cidade. Ela é praticamente grudada com o Duomo e depois de se admirar com a imensa "floresta de mármore" é quase natural que você vá andando para lá....não precisa nem pensar, seus passos vão automaticamente te guiando para o centro da Sala de Estar de Milão, uma imensa galeria com Arcos do Triunfo em cada extremidade, piso de mármore e lotado de lojas chiques, cafés e restaurantes...mostra um pouco do que Milão foi na época em que o norte da Itália começou o processo de Unificação do país..a Galleria Vittorio Emanuelle parece dar a Piazza del Duomo aquele sopro de modernidade, lembra um pouco o que talvez seria a estação d´Orsay (que depois virou o museu) para Paris.









         A Galleria Vittorio Emanuele foi construída no final do século XIX e aspirava tornar-se o símbolo da arquitetura moderna daquele período. Dizem que até mesmo a estrutura da Torre Eiffel foi inspirada nesta galeria. Ou seja, na Galleria Vittorio Emanuele, uma das primeiras da Itália, empregou-se tudo aquilo que havia de mais avançado na época.



A Lombardia, região onde se encontra Milão, passava no século XIX pelas transformações decorrentes do processo de Unificação da Itália. Não é pouco dizer que numa das primeiras grandes galerias da Itália (e que com certeza serviu de inspiração para outras galerias neste país, tornando-se um paradigma), depositava-se toda a esperança de progresso e civilização.



Início da construção da Galleria Vittorio Emanuele - ao centro, o próprio homenageado  primeiro rei da Itália unificada.





     SURGIMENTO DAS GALERIAS 


     As primeiras galerias, tal qual as conhecemos, surgiram na França, principalmente em Paris, em meados do século XIX, na época das grandes transformações de Haussmann. Elas eram chamadas de Passagens.

Passage des Princes: a febre das galerias começou em Paris no século XIX



     Uma das primeiras galerias de Paris, a galeria Passage du Caire, construída ainda no final do século XVIII, remonta às Campanhas de Napoleão no Egito e traz na sua fachada, grandes esfinges e temas egípcios. (Veja o post 
As passagens de Paris)

      Mas foi no século XIX que as galerias de Paris tornaram-se populares. As ruas de macadam e as largas avenidas e boulevards de Paris incentivaram um tipo de circulação urbana pensada especialmente para a burguesia nascente: a idéia de andar (footing) pelas calçadas, como uma forma de sociabilidade burguesa. Com seus vestidos rendados e cartolas e chapéus...consolidava-se cada vez mais, o espaço o ambiente das ruas. Neste sentido, pode-se dizer que as galerias foram uma espécie de "precursores" das lojas de departamento, shopping centers e toda espécie de centros comerciais que conhecemos hoje em dia. No auge, Paris chegou a ter mais de 140 galerias (algumas ainda existem até hoje).

       Ou seja, com o crescente transito de pedestres nas ruas, perambulando nas lojas, cafés, começou-se a criar espaços cobertos, geralmente com telhados envidraçados, capazes de atrair este público e fazê-los ir as compras mesmo em dias em que o tempo estava nublado...não é legal? Uma galeria oferecia a mesmíssima coisa que uma loja a céu aberto, com o plus de que na galeria você estava protegido das intempéries. E além disso, as galerias eram modernas, suntuosas, com tetos envidraçados e pisos de mármore..e muitas vezes imitavam até o estilo modernoso das ferrovias (grande símbolos da modernidade do século XIX). Então, não tinha como dar errado.
       Já no início do século XIX, Paris contava com algumas galerias luxuosas, como a Galerie Vivienne, que mais parece o saguão de um hotel de luxo, ou um compartimento do futuro Titanic A Galerie Colbert, por sua vez, mais lembra uma basílica do que uma loja. Você quase entra num lugar desse rezando uma Ave Maria e um  Pai Nosso. Inclusive estátuas, vasos e ornamentos religiosos não são raridade nestes locais, pelo contrário. A Passage des Princes foi construída por um banqueiro, que comprou o Hotel des Princes na rue Richelieu, e a transformou numa galeria..um luxo..!!!A Passage des Panoramas tinham no século XIX as famosas lanternas a gás, além de ser especializada em produtos orientais. Além disso, o seu nome deve-se a um terraço que possui uma visão de 360°, dando uma vista panorâmica de Paris a partir da colina de Montmartre, quer mais?
      No auge do sucesso das galerias em Paris no século XIX, você praticamente poderia ficar o dia inteiro andando entre uma e outra, elas possuíam tudo que você queria ou precisava. Boutiques, lojas comerciais, correios, café, roupas, jóias, etc. Algumas vezes, algumas galerias eram até interligadas entre si.

     Essas galerias, como centros comerciais, começaram a perder a sua hegemonia na França, com o surgimento estrondoso das Galerias Laffayete em Paris. Com o surgimento desta galeria, abandonou-se aquele conceito das Passagens, lugares cobertos que você entrava numa ponta e saía na outra. Se for pensar bem, as Galerias Laffayete praticamente se parecem com a idéia que a gente tem hoje de uma "loja de departamento". Era uma coisa nunca vista em Paris até o final do século XIX.


    A PRIMEIRA GALERIA DA ITÁLIA: GALLERIA DE CRISTOFORIS


        Muita gente acha que a Galleria Vittorio Emanuele foi a primeira galeria da Itália. Não foi. Certamente ela foi a mais popular, a mais grandiosa, a mais conhecida. Mas não foi a primeira, não.

A primeira galeria italiana também estava em Milão, é claro. Mas passando por ela hoje em dia, você praticamente não vai reparar. Pois embora o traçado da galeria esteja mantida, ela praticamente se descaracterizou...hoje ela não passa de "mais uma galeria", que você sequer tem vontade de entrar, olhando de fora.




Trata-se da Galleria de  Cristoforis. Seu traçado é simples. Ela começa na Corsia del Servi (como era chamado o Corso Vittorio Emanuelle antes da Unificação) e seguia num trajeto retilinio até terminar em um T.




E você se lembra dos autômatos no filme A invenção de Hugo Cabret?


Pois é, na Galeria de Cristoforis você podia ver um maravilhoso Teatro Mecânico. Uma técnica antiga de teatro usando bonecos autômatos, que se movimentavam utilizando um mecanismo parecido com as engrenagens dos relógios. Não é legal? Pena que não existe mais....



autômatos feitos por Pierre Jacques Droz no século XVIII, encontram-se no Museu  de Neuchâtel na Suiça


La musicienne automate androïde des Jaquet-DrozLe mécanisme de l'automate androïde des Jaquet-DrozLa main de l'automate androïde des Jaquet-Droz



A antiga galeria original foi demolida para dar espaço ao traçado atual. Hoje existe uma galeria lá que tem o mesmo nome, mas é bem contemporâneo mesmo, e em nada alerta alguém que passa por lá desapercebidamente, a História deste local. Simplesmente foi esquecido qualquer referência a isso.




A GRANDIOSIDADE DA GALLERIA VITTORIO EMANUELE : GIUSEPPE MENGONI


A construção da Galeria Vittorio Emanuele está em outro nível. Nada que foi feito na Itália, e mesmo fora dela, se parece com isso. A Galeria Vittorio Emanuele é a obra prima de Giuseppe Mengoni e foi o resultado da vitória deste para um concurso público que ocorreu no século XIX para revitalizar a Piazza del Duomo como parte de um projeto de revitalização de Milão.



Giuseppe Mengoni
Giuseppe Mengoni

   
           




  Foi assim que o arquiteto Giuseppe Mengoni concebeu esta grandiosa estrutura, que traduzia bem aquele momento porque Milão passava. Nada de falsa modéstia, o negócio era construir um negócio para deixar o recado bem claro: "cheguei , chegando.!". Precisava-se de uma construção para revitalizar o centro de Milão. A idéia era ligar o coração de Milão no centro, a Piazza del Duomo, até a Piazza della Scala, local em que realizava os inesquecíveis concertos e óperas no Teatro alla Scala de Milão. Ou seja, ligava-se o centro de Milão ao local de divertimento preferido da burguesia, seu teatro.



Visão que se tem logo que sai da Galleria Vittorio Emanuele: ao centro a estátua de Leonardo da Vinci, no fundo o Teatro alla Scala.


caricatura do século XIX ironiza o projeto de Mangoni, que parece distorcer a visão panorâmica da Piazza del Duomo, tirando-lhe a harmonia, projetando-se de forma incômoda sobre o Duomo de MIlão. 


Mengoni então pensou na construção de um imenso complexo, com a forma de uma Cruz. No centro dessa cruz haveria um espaço que as ligava, formado por um espaço octogonal.  Um imenso teto envidraçado em forma de cúpula dominava o centro do Octogon.



Esse octogon seria o centro da galeria propriamente dito, e o teto chegava a 47 metros. De cada braço do Octogon saía um ramo, um corredor, que se estendia de forma simétrica.






Na saída de cada um dos ramos, corredores, há um imenso painél, cada um deles simboliza um continente:




Africa



Asia
América
Europa


Na saída externa de cada ramo da galeria, foi construído um portal, que lembra o formato de um "Arco do Triunfo" e foi inspirado no Arco de Constantino em Roma.



O principal ramo da galeria é aquele que começa na Piazza del Duomo e atravessa o quarteirão, chegando até a Piazza della Scalla.


O chão da galeria é todo trabalhado, é lindo, reluzente, parece uma obra de arte.








No centro da galeria, há um famoso mosaico no chão, de um touro. A tradição popular diz que se você der 3 voltas ao redor do touro, você garantirá sua fertilidade de garanhão reprodutor.


Mas você vai reparar que o desenho do touro está danificado por um furo. É que na II Guerra Mundial, a galeria foi bombardeada, e o pavimento todo ruiu. Quando, após a Guerra, começou a reconstrução, encontraram esse buraco no meio do touro, deixaram ele lá até hoje.




A Galeria Vittorio Emanuele foi inaugurada em 1867. E foi uma homenagem do primeiro rei da Itália, após a unificação do país.


Porém, o mentor do projeto sofreu uma fatalidade. Menos de uma semana antes da inauguração. Durante uma inspeção no alto da galeria, Mengoni caiu lá de cima. Com isso, ele não chegou a ver a realização do seu projeto concluído.


Dizem que o traçado da estrutura do Octogon é tão incrível que teria inspirado até Gustav Eiffel. Cerca de 20 anos antes da construção da torre de Paris, Mengoni já trabalhava elegantemente com estruturas de metal e vidro, construíndo a cúpula da galeria. Não é uma obra prima?





foto



BELLE EPOQUE EM MILÃO 


Quem passa hoje pela Galeria Vittorio Emanuele não deixa de reparar um certo ar decadente. É claro, o lugar é lindo, vistoso, deslumbrante. Mas cheio de cafés caros e restaurantes que ninguém vai. Ele lembra um certo ar "decadence avec elegance", exatamente porque foi isso mesmo. Durante o século XIX, a galeria representava o espírito da Belle Epoque em Milão. Era lá que você iria ver os cavalheiros burgueses elegantemente trajados com cartolas, luvas e bengalas acompanhadas de suas esposas também vestidas com seus vestidos drapeados e rechonchudos. Afinal, à poucos passos dali, podia-se ver, ao vivo, um espetáculo dirigido pelo próprio Verdi, Stravinsky ou Debussy.



Fil:XIX century print, Piazza della Scala, Milano.jpg



 Giuseppe Verdi




A galeria Vittorio Emanuele era então o "esquenta" dessa rapaziada burguesa...era onde eles davam um tempinho para pagar de gatão ou gatona, dar uns olharezinhos aqui e ali..antes de o espetáculo começar. Não era difícil ver um dos produtores do elegante Teatro alla Scala, sentado num café Gambrius, Biffi ou Campari, comentando os preparativos da produção com um Stravinsky, um Verdi, etc. Então para lá também iam os arrivistas e toda sorte de aventureiros, em busca de uma palhinha num espetáculo, um papelzinho secundário numa ópera, ou divulgar a sua belíssima voz de barítono à plenos pulmões bem no meio da galeria..quem sabe alguém nota né?





Automaticamente, as lojas, restaurantes e cafés da Galleria Vittorio Emanuele tornaram-se o endereço mais caro e chique de Milão. Se no século XX a área da Via Monte Napoleone, Via della Spiga, Via Manzoni e o Corso Venezia tornou-se o reduto dos fashionistas; no século XIX era na Galleria Vittorio Emanuele que você ia encontrar o seu chapeuzinho.

DECADENTE, MAS ELEGANTE


Não sei quando a galeria ficou conhecida como Il Salotto de Milão. Mas eu acho que o título é bem apropriado. É um lugar da casa que você gosta de receber os seus convidados, quem vem de fora - em geral é uma parte bonita e bem apresentável - mas não constitui o todo da casa. Ela apenas mascara o que você não quer que os outros vejam, a bagunça, o que realmente é...

E olhando de longe, parece que Milão tem mesmo essa espécie de recato. Enquanto a Galeria Vittorio Emanuele é um ambiente excessivamente formal - de Sala de Estar mesmo - você vê ao longo da cidade, espaços espontâneos como o clima informal dos jovens sentados largadões nas calçadas proximas da Colonne di San Lorenzo à noite; ou as dezenas de barzinhos e restaurantes que se espalham as margens dos canais na região do Navigli na hora do happy hour.


O Salão de Milão não tem nada de errado, nada para você odiar ele. Mas as vezes acho que você simplesmente não se identifica muito com ele porque ele tem um ar meio aristocrático  e decadente. Ele lembra o que Milão já foi muito mais do que o que é agora. Talvez seja por esse excesso de formalidade - e isso é bem Milão - que não nos identificamos muito com esse lugar, apensar dele ser tão lindo, deslumbrante,  que dói!!!



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