OS ANJOS DE ROMA...
Roma tem seus anjos, eles se espalham pela cidade, observando os mortais lá de cima, como no filme Asas do Desejo, de Win Wenders. Tá certo, já escreveram sobre isso.."Anjos e Demônios" está ai... Mas ...certamente não é a Dan Brown que eu devo minha inspiração, mas à Alban Berg e seu Concerto em Memória de um Anjo... Então aqui vai minha contribuição
Em Roma, há o belíssimo Mausoléu do
Imperador Adriano, perto do Vaticano, que hoje em dia é conhecido simplemente
como Castelo Sant´Angelo. A referência à um anjo não é aqui aleatória. Dizem
que o papa Gregório I viu o Arcanjo Miguel no alto, desembainhando uma espada,
e interpretou isso como um sinal do término da Peste; por isso naquele tempo
mandou-se construir uma enorme estátua de um anjo em cima do castelo, que a
partir daí recebeu este nome.
Mas para chegar ao Castelo de Sant´Angelo é
preciso atravessar uma ponte belíssima, repleta de anjos, que foram construídas
por Lorenzo Bernini... E não foi um anjo que apontou uma flecha para o ventre
no Êxtase de Santa Teresa?
E os anjos no
alto do Vitoriano...
O Vittoriano é
também conhecido como Altare della Patria, onde está a chama perpétua em
homenagem ao soldado desconhecido...Os anjos, ao redor do monumento, lá no
alto, parecem observar os viventes e seu mundo, afinal são eles que nos levam
de um mundo para o outro....
E você já pensou que um anjo às vezes quer viver no mundo, como nós? Eu penso nisso o tempo todo, os limites entre esses mundos..como numa antiga estória de anjos...
A MORTE DE UM ANJO
A MORTE DE UM ANJO
A referência
aos anjos do Vittoriano e sua estreita relação com os combatentes me lembrou de
uma estória sobre a memória de um anjo que eu conheci há algum tempo. Neste conto de Jean Paul Richter (as referências podem não ser precisas, pois cito de memória minhas impressões sobre o que eu li, talvez já embotadas pelo tempo), o anjo
traz a lembrança de sua morte...O autor, num pequeno conto chamado “La mort d´un
ange”, Richter rrefere-se à um anjo, exatamente aquele que é chamado de “o anjo
da morte”. Este anjo tem como função aparecer no momento derradeiro do homem e
anunciar sua morte...mostrar-lhe o caminho até o Éden. No turbilhão da morte,
com sua violência que nos arrebata deste mundo, ele aparece como o rosto sereno
que irá nos guiar para o Paraíso...
Acontece que o
autor descreve esse cenário numa época de guerra. O anjo é constantemente
levado ao campo de batalha, onde centenas de soldados morrem todo dia. O autor
situa o cenário de seu conto num campo de batalhas banhado por sangue e
lágrimas.
Um dia, o anjo
da morte é obrigado de uma só vez a retirar dali tantas almas que o improvável
acontece: ele quer conhecer de perto o que é isso? O que é a morte para o
vivente? O que ele sente no seu momento de agonia? Então ele exprimiu o desejo
de pelo menos uma vez estar na pele de um vivente para conhecer de perto seu
sofrimento e poder acamá-lo na sua hora derradeira...
Diante desse
desejo tão misericordioso, os outros anjos lhe prometeram que no momento em que
o “anjo da morte” conhecesse enfim seu falecimento “humano”, eles o avisariam
com um céu resplandecente.
O anjo pousou
então sobre o campo de batalha, e aproximou-se de um jovem soldado cujo peito
ainda arfava e que ainda segurava entre seus dedos o retrato de sua noiva,
deitou-se sobre o corpo do jovem guerreiro e com um beijo retirou-lhe a última
centelha da vida, aspirando-a, tomando seu lugar no mundo dos viventes...
Submergido no
seu novo corpo terrestre, seus pensamentos, que em geral voavam flexivelmente
estavam embotados pelas brumas de seu cérebro. Seu corpo leve e flutuante
sofreu com as intempéries do frio, do calor e da fadiga. A fome o supliciava, a
sede lhe ardia, a dor o dilacerava. De seu peito sangrava, saindo gotas grossas
do sangue de um ferimento. No seu primeiro sopro na vida terrestre, o anjo
perguntou em desespero “É isso a morte?”. Não era, era apenas dor, fome, sede,
fadiga, ferimento...Como não viu o sinal prometido anunciando a morte, ele
compreendeu que afinal, ao contrário, aquela
era a vida...
De noite, o
silêncio profundo, o barulho distante das batalhas, ia envolvendo como a noite,
tudo, num véu mortuário. O anjo então conheceu o silêncio mais profundo da alma
e a solidão mais profunda do ser humano, ele estava sozinho neste mundo...jazia
ali, rígido, solitário, com frio...e os seus olhos pesados começam a se
fechar...Novamente ele olha para os céus e pergunta, sem muito entusiasmo, se
era aquilo a morte... Mas novamente, nenhum sinal dos outros anjos... e ele
compreendeu que aquilo não era a morte, mas
tão somente o sono...num dia solitário.
No sonho, ele segurava sua noiva nos braços,
neste sonho, o soldado não queria morrer, ele iria voltar, iria amá-la, iria
sobreviver. Mas essa visão fica cada vez desembotada... e a imagem fugidia de
sua amada se dissipa com o fim do sonho que teve numa noite febril no campo de
batalha, enquanto delirava. Quando o anjo acordou, novamente ele estava sozinho
num campo de batalha, e com uma dor no peito inexplicável. Seria agora a morte?
Novamente o silêncio, aquilo não era a morte, mas apenas a saudade, a dor imensa da distância ou da perda de
alguém que amamos...
E quando pela
primeira vez, ele vê os companheiros caindo um a um, ao seu lado, no campo de
batalha, ele soltou um grito aterrador...Esse sentimento, era o ódio...
Neste único
dia, o anjo sentiu a fome, a dor, o ferimento, a saudade, a solidão e o ódio.
Sem rumo ele acabou indo para um cemitério distante, onde o vento da noite
cortava sua já face pálida. Ele pensou: “Ó pobres homens, como pode vosso
coração suportar isso?”. No seu desejo misericordioso de compreender a última
hora de agonia do vivente, o anjo finalmente compreendeu as dores que habitavam
a pobre alma do soldado cujo corpo ele ocupava...e que no instante último, não
lhe restava mais nada, que ao partir deste velho mundo ele só levava suas
feridas.. a dor, a fome, o ferimento, a solidão, o ódio...somente a partir
desta experiência que o anjo da morte teve finalmente uma compreensão do
sofrimento daquele que parte, o que ele sente na sua hora última...e
A morte não é
nada, ela é apenas o fim de uma trajetória, ela aparece no conto Jean Paul Richter como o momento de alívio e
promessa expressa no sorriso do anjo da primeira hora...A morte, este conto
está bem claro, é melhor do que a vida...
Seu corpo
começou a estremecer neste puro momento de êxtase e agonia, suas chagas abriram
e o sangue, caia de seu peito como uma lágrima...sua energia começava a se
desvanecer e seus olhos fecharam-se como uma tumba....De repente, o céu se abre radiante, e com ela submergem
mil anjos flamejantes. O anjo da morte é recebido então como numa manhã de
festa...e então o “anjo da primeira hora” lhe recebe com um sorriso
reconfortante “eis-te de volta, tu´que és para a eternidade meu irmão e amigo
celeste”
A MORTE E O
ABSOLUTO
Esta estória do
anjo da morte sempre me deixou com uma pulguinha atrás da orelha. Não estamos
ainda desvencilhados dessa visão “romântica” da morte: a morte como o Absoluto.
Se tem alguma coisa que a morte traz, na visão deste conto, é que a morte
encerra uma etapa de dor, sofrimento, separação.. a própria caracterização do
anjo da morte como “o melhor dos anjos”, mostra esse estatuto amigável da
morte. A vida é corroída, degradada, intolerável, envenenada, a morte é uma
conquista, a resplandecência, um dia de céu aberto... A vida, olhada do ponto de vista da morte, é
claramente mais terrível do que a morte...
A VIDA DE
KLEIST
Quase na mesma
época em que Jean Paul Richter escreve sobre a morte de um anjo. O poeta alemão
Henrich Von Kleist leva essa ideia de morte evocada aqui ao seu extremo...Seu
objetivo é encontrar, não tanto alguém para viver ao seu lado, mas para morrer
ao seu lado. Isto mesmo, seu objetivo derradeiro é encontrar alguém neste
mundo, que deseja suicidar-se junto com ele. Uma espécie de nostalgia pela morte
ainda não vivenciada. Bem, para encurtar a estória ele faz essa proposta meio
louca para um monte de mulher que obviamente lhe responde com uma negativa nada
polida. Até que ele finalmente encontra uma doida, Henriette Voguel, que já está em estágio terminal, e aceita esta
empreitada. Nos dois casos, do anjo da morte, e da morte de Kleist, a morte
aparece como um fim absoluto, uma solução, a morte é uma promessa que o
presente recusa, a morte traz uma perfeição que contrasta em absoluto com a
vida...tese discutível e polêmica, é claro
Porém, não
deixei de pensar nisso quando estive em Roma, e diante de tantos anjos. Os
anjos são aqueles que nos guiam, no momento derradeiro... Mas a questão de Win
Wenders continua pertinente...eles vivem ao mesmo tempo, tão longe, tão perto...eles
estariam nos observando? Conheceriam nossos desejoa? Nossas vidas? Estariam cuidando de
nós, como seres invisíveis e imortais? Quem sabe, algum deles, apaixonou-se por
uma trapezista, e agora anda entre nós, os viventes....
2 comentários:
Olá Devir!
Maravilhoso esse post como todos os outros.
Você menciona que no post anterior falou sobre o diabo mas eu não recebi esse e nem encontrei por aqui...Poderia me mandar?
Abraços
Olá Carmen, obrigado por ler o post e pelos comentários. Sim, eu havia escrito um outro texto antes desse sobre o Diabo , mas acabei deletando pque estava mal escrito...a confusão foi minha mesmo, pois muitos posts ainda estão escritos pela metade, por falta de inspiração (às vezes você tem a idéia mas não sai como queria)...
Se você se interessa pelo tema pode ler o livro de Robert Muchembled, Uma História do Diabo...; do Carlo Ginzburg "História Noturna: decifrando o sabá" e a "História do Medo no Ociente" do Georges Dulemeau...., fica a sugestão...
abrçs
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